A lenda do espelho de Nienna

A muito tempo atrás, quando as águas do mundo ainda eram turvas e os homens ainda chamavam os guardiões de deuses. Nienna presenteou os homens com uma estranha pedra partida ao meio.

A pedra era muito grande, tinha 4 metros de altura e 2 metros e meio de comprimento, sua superfície era opaca e sem brilho, porém seu interior era de um negro tão profundo que refletia como um espelho. Mesmo tendo sido partida ao meio a pedra não mostrava nenhuma irregularidade, mostrando com total certeza a perícia daquele que a havia partido. 

Era estranho olhar para aquela face espelhada, pois a mesma parecia refletir tudo e mais um pouco. Por algum motivo a pedra podia refletir o que cada um guardava em seu coração, mostrava seus sonhos, desejos e segredos, nada ficava oculto de seu reflexo, não importando se fossem coisas boas ou ruins.

Por isso muitos tiveram receio de se aproximar da pedra que foi nomeada como “O espelho de Nienna”. Por fim o espelho foi levado pelos clérigos de Gueller para dentro de sua catedral e lá foi colocado em uma sala especial para que quem desejasse contemplá-lo não fosse perturbado.

Algumas pessoas eram vistas entrando na sala, mas a maioria saia de lá calada e com o olhar pesaroso, e por muitos anos se seguiu dessa forma.

Até que num dia, um jovem advogado ofereceu como prova da inocência de seu cliente, uma visita ao velho espelho.

O juiz que julgava o caso tinha dúvidas sobre o fato e por conhecer a eficácia do espelho aceitou a proposta, selecionou 5 pessoas para entrar na sala junto do réu, essas pessoas ficariam próximas a extremidades da sala, enquanto o réu ficaria diante do espelho, para que fosse revelado se o mesmo era ou não culpado pela morte brutal de sua esposa, e assim foi feito.

Mas para a surpresa de muitos o que foi mostrado não foi o assassinato, mas sim o réu se encontrando com sua esposa num abraço afetuoso e demorado, demonstrando que o desejo do coração do réu, era ter sua esposa de volta em seus braços.

Todos já estavam dando o réu como inocente quando o jovem advogado falou:

– Estão vendo, meu cliente não matou sua esposa! Se o houvesse feito o espelho revelaria.

Mal terminou de dizer essas palavras e o espelho, como em resposta a sua indagação, começou a revelar minunciosamente todo o crime. Revelando que o réu realmente havia matado sua esposa num surto de ciúme e fúria, eles puderam ver cada golpe deferido e cada palavra dita também pode ser ouvida em suas mentes.

Ali duas verdades foram reveladas, a primeira que o réu era culpado do assassinato e foi condenado pelo seu crime e a outra que o espelho possuía poderes muito maiores do que eles imaginavam.

Depois disso um grupo de pessoas passou a testar o espelho e suas capacidades. Por fim descobriram que o espelho mostrava muito mais que apenas os anseios daqueles que se posicionavam em sua frente.

Ele revelava a verdade por trás de qualquer ação em que a pessoa tenha tomado parte ou vivenciado ao longo de sua vida, sendo apenas necessário citar o fato e o espelho o mostraria.

Com essa descoberta muitas pessoas foram visitar o espelho de Nienna, desejando relembrar momentos perdidos ou tirar a limpo situações controversas, por fim para diminuir o caos, um número de visitas por dia foi instituído e um tempo máximo de permanência também.

Além do fato de que sempre que um crime incutisse duvidas ao juiz, ele mesmo se dispunha a usar o espelho para que a verdade fosse revelada e a justiça fosse feita.

Após isso, muitos passaram a chamar o espelho de a pedra da justiça ou a pedra da lei e por fim o povo nomeou Nienna como a deusa da justiça.

Assim foi e os anos passaram e o século mudou, mas o espelho de Nienna continuava e sua capacidade não mudava. Mas a lei mudou, agora sendo ligada diretamente ao espelho, caso o espelho revelasse a culpa de um homem seu destino era sempre o mesmo.

Todavia em um certo momento da história, um grave crime ocorreu, quase todo um vilarejo foi dizimado por um incêndio, plantações, animais e pessoas, todas mortas pelas chamas.

O magistrado de Gueller foi chamado para investigar o que realmente havia acontecido e descobrir se o incêndio era natural ou criminoso.

O fogo havia iniciado nas plantações de trigo e o vento deu folego para que se alastrasse por quase toda a vila, as chamas cresceram rápido demais, as pessoas dali não tiveram a mínima chance de escapar.

Apenas 15 pessoas sobreviveram, a maior parte por sorte. Como o incêndio se iniciou nas plantações de trigo as chances de ter sido iniciado por alguém era muito alta, por isso o magistrado se concentrou em estudar o local.

As investigações duraram 3 semanas e por fim o magistrado foi falar com o rei, revelando que o príncipe herdeiro foi o causador do incêndio e que o rei deveria leva-lo a frente do espelho para que tudo fosse esclarecido.

O rei num ímpeto de fúria foi falar com o príncipe, que jazia de uma doença a mais de 2 semanas, ao falar com ele, o mesmo revelou ser o culpado e que tudo tinha sido um acidente, o rei enfurecido agarrou seu filho e o levou até diante do espelho.

Lá chegando o espelho revelou tudo o que havia acontecido.

O jovem príncipe estava numa caçada noturna, uma estranha criatura alada assolava a região sul de Gueller, sua caçada se estendeu por um longo trajeto e por fim conseguiu ferir mortalmente a criatura com uma técnica de fogo.

A criatura caiu nas proximidades da vila com seu corpo chamuscando em brasas vivas, ao chegar ali o príncipe encontrou a criatura já morta e removeu seu corpo, para não gerar importuno ao povo da região, mas não notou que o local ficara com pequenas brasas.

O vento se intensificou após a saída do príncipe e carregou algumas dessas brasas para dentro da plantação de trigo, iniciando assim o incêndio.

Quando o rei viu aquilo, caiu de joelhos no chão, pois indiferente das circunstancias, foi a ação de seu filho que iniciou aquele terrível acidente e se aquilo fosse revelado, o rei seria forçado pela lei a condenar seu único filho a morte, mesmo sabendo que apenas o acaso o ligava a tudo aquilo.

Em meio ao pranto do rei, o Sumo Sacerdote de Gueller se aproximou e disse:

– Meu rei, muito já foi perdido nesse infeliz acidente, não e certo que o reino perca um príncipe que se dispõe a caçar sozinho uma criatura durante a noite, apenas para resguardar seu povo. Não sabemos porquê isso aconteceu, mas não acredito que Deus deseje que o senhor mate seu filho por causa de um acidente.

O rei ainda aflito respondeu:

– Mas o que devo fazer então? A lei diz que se o espelho revelar algum culpado, esse homem deve ser condenado e mesmo que isso seja encoberto, meu filho se culpa de tal forma, que até doenças já foram convocadas por sua angustia. O que devo fazer?

Nesse momento o sacerdote foi em direção ao príncipe e iniciou:

– Que o príncipe seja encarregado de ajudar aqueles que ainda vivem. – O sacerdote segurou a face vacilante do príncipe e indagou – Meu jovem, que você encontre força em Deus e supere suas falhas. Seja um rei bom, que cuida e pensa no seu povo, para que as almas daqueles que se foram possam encontrar descanso. Não vacile mais!

Virando-se novamente para o rei, o sacerdote continuou:

– Meu rei, por favor, livre-se desse espelho, sua magia e função já foram a muito excedidos. O povo não o usa mais como uma ferramenta para conhecimento e aperfeiçoamento, agora ela se tornou apenas um artificio de intrigas e punições. Os homens não tem mais a chance de arrepender-se e redimir-se, pois o destino dos culpados que aqui adentram é sempre o mesmo, a morte.

O rei compreendeu o desejo do sacerdote e disse que faria tudo da maneira que o mesmo lhe recomendara e por fim deixou o destino do espelho nas mãos do sacerdote.

Daquele dia em diante a pedra não pode mais ser usada e o sacerdote se retirou por 2 meses para que o destino da pedra lhe fosse revelado.

No fim de sua peregrinação o sacerdote voltou com a resposta. Mandou chamar o príncipe e lhe incumbiu a tarefa de selecionar 5 homens, para o ajudar a levar a pedra até o ponto mais distante do oceano, ali deveriam arremessar a pedra nas profundezas do mar.

Não foi uma tarefa fácil, mas os 6 homens cumpriram sua missão chegando no local, após 5 meses de viagem e com as provisões quase no fim.

Ali chegando se uniram e arremessaram a pedra no mar. Ela afundou rápido, deixando apenas um rastro de bolhas que aos poucos foi se intensificando, até que cobriu uma área 10 vezes maior que o barco em que o príncipe e seus homens estavam.

O susto foi grande, mas as bolhas aos poucos se espalharam, não cessaram, apenas seguiram como uma onda que se iniciou ali.

Após o ocorrido veio a surpresa. Por onde aquela estranha maré de bolhas passava, as águas se tornavam límpidas e translucidas, da mesma maneira como os antigos livros diziam que as águas eram no passada distante.

O príncipe e seus homens ficaram admirados, pois a séculos as águas estavam turvas e sem brilho e agora era tudo tão límpido que podiam ver os peixes que nadavam próximos ao barco. Retornaram para casa em segurança e com muita comida, pois agora era fácil pescar.

Quando retornaram foram recebidos com honrarias pelo povo, não sabiam ao certo o porquê daquilo, mas após um tempo, revelaram aos 6 que toda a água do planeta parecia ter voltado ao normal, salgada ou doce, as águas agora eram cristalinas novamente.

O sacerdote os recebeu e os abençoou, disse que não só a aparência da água havia mudado, mas suas antigas propriedades também, agora os curandeiros poderiam usa-la novamente para suas poções e remédios. Todos ficaram muito felizes com isso, principalmente o príncipe, pois sabia que aquele era o primeiro passo para sua redenção.

Muitas outras histórias foram realizadas por esse mesmo príncipe, mas isso fica para outra história.